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Na alienação fiduciária, caracterizada a mora do devedor, o fiduciário deve requerer de imediato a consolidação da propriedade e, se preciso, a venda do imóvel em leilão, respeitando os prazos legais.

1. Em extenso e excelente artigo publicado no boletim Migalhas nº 5.7191 o Prof. Carlos E. Elias de Oliveira apresentou detalhada análise da lei 14.711, de 30 de outubro de 2023, cognominada Marco Legal das Garantias – cuja leitura lenta, desordenada e simultânea com outros textos sobre a matéria animaram os mornos dias pós feriado – minha atenção foi apanhada por duas questões aparentemente desconectadas do tema por que, a rigor, não se encontram diretamente reguladas pela norma legal analisada.

Nelas, o autor analisa causas e consequências do voluntário retardo do credor fiduciário na instauração do procedimento de execução extrajudicial da alienação fiduciária de imóvel e trata da possibilidade de fazê-lo o próprio devedor ou fiduciante, inaugurando o procedimento de excussão como instrumento de defesa.

2. O autor se refere à ilegalidade de o fiduciário retardar injustificadamente as providências necessárias para iniciar os atos destinados à execução da dívida fiduciária, com a intenção de auferir benesses financeiras decorrentes dos elevados encargos moratórios e legais incidentes sobre a dívida consolidada, com a consequente redução do valor a restituir ao fiduciante após a quitação total da dívida ou elevação indevida da dívida remanescente e exigível.

Dispõe o autor que esses encargos vantajosos podem incentivar o credor a postergar o procedimento executivo, adotando “postura de má-fé (de espertalhão) censurada pelo nosso ordenamento por meio do ‘duty to mitigate the loss’, o dever de mitigar as próprias perdas, que “estabelece que o credor não pode adotar conduta oportunista que estimule o aumento da dívida com o objetivo de obter proveito maior.”

Nesse contexto, sustenta que o § 5º A – inserido pela lei comentada ao art. 27 da lei 9.514/97 com o objetivo de imputar ao fiduciante o risco do negative equity – para além de responsabilizar o devedor e o fiduciante pelo pagamento do saldo da dívida eventualmente remanescente após a alienação do bem imóvel em leilão público – pode gerar situação extremamente sensível ao fiduciante, uma vez que, “quanto mais tempo o credor demorar a cobrar a dívida, maior será o valor da dívida por conta da incidência dos encargos moratórios”, ressalvando a não aplicação da regra aos casos de financiamento para aquisição ou construção de imóvel residencial “perante instituições financeiras”.

Grifei “perante instituições financeiras” pois, a meu ver, foi atraída pela utilização, no ‘caput” do art. 26-A, do substantivo masculino ‘financiamento’ que designa operação de crédito própria de entidades com funcionamento e atividades autorizadas pelo Banco Central do Brasil.  Ocorre que, pelo princípio da isonomia e considerada a quantidade de imprecisões conceituais e redacionais encontráveis no texto legal, parece-me que a exceção apontada deve ser aplicada também às operações de parcelamento do preço (não-financeiras) praticadas por construtoras e incorporadoras, o que, por certo, abrirá um novo franco para a judicialização dos contratos de garantia fiduciária.

 2.1 O anunciado § 5º A, incluído no art. 27 da lei 9.514/97, foi trabalhado pelo legislador para, em conjunto com outros dispositivos, estender às operações financeiras e comerciais ordinárias realizadas com garantia fiduciária a responsabilidade dos fiduciantes e prestadores de garantia pessoal pelo pagamento do saldo devedor remanescente, que fora introduzida inicialmente pelo burlesco art. 9º da lei 13.476/17 que, ao cuidar das garantias constituídas no instrumento de abertura de limite de crédito, dispôs sobre dita obrigação sem que se tivesse dado conta de que, no procedimento então vigente para a venda do imóvel em leilão – exclusivamente pelo valor revisado do bem em primeiro leilão ou pelo valor total da dívida no segundo – não haveria hipótese possível de aplicação da imposição pretendida, situação agora corrigida pela redução do referencial mínimo para venda do bem imóvel à metade do “valor de avaliação” (expressão inserta no § 2º do art. 27 da lei que, pela inexistência de avaliação ou reavaliação do bem levado à leilão, contém explosiva potência de judicialização).

Assim, ao mesmo tempo em que a lei aperta o devedor e o fiduciante reduzindo as possibilidades de ‘saída honrosa’ para a situação de inadimplência enfrentada, mostra toda a sua magnanimidade para com o fiduciário, ao estabelecer prazos não peremptórios, incompatíveis com a presteza do procedimento adotado e destituídos de penas pelo não cumprimento.

Não por acaso, a lei de regência (a) não penaliza o fiduciário pela administração descuidada do contrato que afeta a indicação dos meios de localização rápida e eficiente dos intimados; (b) não impõe prazo ao fiduciário para o início do procedimento de excussão após evidenciado o inadimplemento; (c) não determina prazo para o atendimento da exigência legal de apresentação dos comprovantes de pagamento dos tributos para a consolidação da propriedade; (d) não estabelece multa para o descumprimento do prazo de realização do público leilão após a consolidação da propriedade, que, ademais, foi agora absurdamente alargado para sessenta dias (art. 27, caput, com redação).

Esses são apenas alguns exemplos de situações admitidas pela lei, favoráveis e suficientes para proporcionar ao fiduciário a postergação de medidas e proporcionam a acumulação de parcelas vencidas, acréscimos moratórios e penalizações de toda ordem, para além da imputação de taxa de ocupação ao fiduciante e de sua própria desobrigação quanto às despesas condominiais e tributárias incidentes, sem correr o risco de responder por violação voluntária do ‘duty to mitigate’.

Aliás, cabe aqui apontar uma inusitada contradição interna na lei 14.711/23. De um lado, a lei permite e fomenta a extensão ou recarregamento de crédito em contratos bancários com garantia fiduciária, bem como impulsiona  a contratação das alienações fiduciárias de propriedades supervenientes – operações que são lastreadas direta ou indiretamente pelo bem patrimonial nominado direito real de aquisição, no qual se sub-rogarão esses créditos em eventual execução de garantia antecedente – enquanto, de outro lado, a lei penaliza gravemente o devedor e seu garante fiduciante com a extensão de prazos, a redução do referencial mínimo para venda do imóvel em leilão e a execução de saldos remanescentes. Evidentemente, a ausência de valores sobejantes – representação financeira do mencionado direto real de aquisição – transmudará para pó a garantia desses credores tardios.

2.2 De resto, cumpre redizer que a aspiração de penalizar o fiduciante por prejuízos nunca comprovados ou não comprováveis pelas entidades representativas dos mercados financeiro e de capitais deturpa o caráter satisfativo do instituto da alienação fiduciária de bem imóvel – garantia fiduciária pronta e suficiente para proporcionar o retorno do crédito concedido, nos casos de inadimplência contratual – que propicia ao credor fiduciário plena autonomia para examinar previamente o bem oferecido em garantia, proceder à sua avaliação econômica e estabelecer, unilateralmente, o limite de crédito a ser conferido ao tomador, mitigando a possibilidade de prejuízo na operação, limitando-a a situações decorrentes de descaso, comodismo, incompetência ou inobservância dos critérios analíticos da contratação de crédito.

3. Legitimidade do fiduciante para iniciar a execução extrajudicial

Na sequência, o autor questiona a legitimidade de, constatado o retardo comissivo ou omissivo do fiduciário, o próprio devedor ou o fiduciante requerer o início do rito executivo extrajudicial previsto na lei 9.514/97 para a consolidação da propriedade e oferta pública de venda do imóvel para a liquidação da dívida, entendendo ser “plenamente viável”, considerada a omissão dos arts. 26 e 27 A da referida lei, que o devedor ou fiduciante tome a iniciativa de inaugurar os procedimentos executivos, mediante requisição ao competente Ofício de Registro de intimação do fiduciário para o recolhimento dos tributos devidos e consequente consolidação da propriedade plena para a realização dos públicos leilões de venda e quitação da dívida, dispensando-se, por óbvio, a intimação do requerente para a purgação da mora.

Trata-se, ainda no entendimento do autor, “do direito do devedor em atenuar os seus prejuízos, pois, quanto mais demorar a excussão do imóvel, maior será o saldo devedor remanescente.”

3.1 O questionamento engendrado é bastante interessante e merece ser marcado e ponderado para futuras revisões da norma analisada.

No entanto, nas condições atuais, considero impraticável a solução proposta por não reconhecer a omissão legal apontada. Na verdade, a lei traz um procedimento expresso, específico e definido para a execução extrajudicial que autoriza apenas ao fiduciário a iniciativa de requerer ao Oficial de Registro de Imóveis a intimação do devedor e do fiduciante e consecução do procedimento até a consolidação efetiva da propriedade.

Por conta do procedimento legal estatuído entendo que a intimação tempestiva do fiduciante, assim como a consolidação da propriedade, a venda do bem em leilão público e demais atividades requeridas para a realização do ativo e quitação da dívida constituem obrigações do fiduciário, cujo descumprimento configura a violação contratual que autoriza ao devedor ou fiduciante exigir judicialmente sua efetivação, inclusive com o pedido de antecipação de tutela e fixação de multa para o caso de descumprimento, além da imposição de perdas e danos, nos termos dos arts. 536 § 4º e 815 do CPC.

4. A análise e o entendimento do texto da lei em comento, notadamente da parte relativa ao “aprimoramento” das regras da alienação fiduciária de bem imóvel, ainda preliminares, já demonstram a fragilidade de parte das proposições, o que potencializa controvérsias e expõe o instituto às interpretações judiciais.

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1 Oliveira, Carlos E. Elias de. Lei das Garantias (lei 14.711/23): Uma análise detalhada. Boletim Migalhas nº 5.719. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/396275/lei-das-garantias-lei-14-711-23–uma-analise-detalhada.

Mauro Antônio Rocha: Advogado graduado pela Faculdade de Direito da USP. Pós-Graduação em Direito Imobiliário e Direito Notarial e Registral. Vice Presidente da AD NOTARE Academia Nacional de Direito Notarial e Registral

Fonte: Migalhas

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