A indisponibilidade de bens na era digital: Uma análise crítica do provimento CNJ 188/2024 e seus impactos no registro de imóveis.
O presente artigo analisa o Provimento CNJ 188/2024, que reformou a plataforma da CNIB 2.0. Aborda a hipertrofia da ferramenta e o recrudescimento das indisponibilidades de bens em função direta da plataformização do registro público, com foco nos efeitos jurídicos da prenotação e na problemática do § 3º do art. 320-I do CNN-CN-CNJ-Extra, que impede o registro de títulos prenotados em caso de superveniência de ordem de indisponibilidade.
Argumenta-se que a norma em questão, ao fulminar o direito vestibular de prenotação, afronta o direito de propriedade e seus atributos, criando anomalias no sistema civil, registral e processual. Defende-se a necessidade de revisão do dispositivo, com vistas a garantir a segurança jurídica e os direitos fundamentais dos cidadãos.
Palavras-chave: Indisponibilidade de bens, CNIB 2.0, Provimento CNJ 188/2024.
Introdução
O Provimento CNJ 188 de 4/12/2024 reformou a plataforma da Central Nacional de Indisponibilidade de bens (CNIB 2.0), ajustando e aperfeiçoando o sistema com vista a torná-lo mais eficiente e racional.
O instituto jurídico da indisponibilidade de bens nasceu com objetivos claros e muito específicos – combate à dissipação patrimonial decorrente de improbidade administrativa, intervenção em instituições financeiras, combate à lavagem de dinheiro e financiamento de terrorismo internacional, confisco de bens por tráfico de drogas e outras atividades excepcionais e de grande repercussão social.1 Note-se a preponderância de um interesse geral em todas essas iniciativas legislativas em contraste com a explosão de ordens oriundas de processos ordinários de execuções trabalhistas e civis.
O sistema criado em 2014 (Provimento CNJ 39/2014) vem de substituir progressivamente as figuras tradicionais do processo civil brasileiro, como a penhora, arresto e sequestro em execuções civis e trabalhistas. No caso das execuções trabalhistas, ainda que se possa argumentar, com base na Teoria do Diálogo das Fontes, que a decretação de indisponibilidades no processo trabalhista encontra seu fundamento no art. 185-A do CTN, não se deve esquecer que no caso dos créditos privilegiados se exige o preenchimento de pré-requisitos para a deflagração da indisponibilidade: a) haver devedor tributário; b) ocorrer citação; c) faltar nomeação de bens à penhora; e d) ser impossível localizar bens passíveis de constrição, o que não ocorre ordinariamente nas ordens oriundas tanto do foro trabalhista como do cível.2
De fato, nos termos do art. 889 da CLT, os preceitos da Lei de Executivos Fiscais (lei 6.830/1980) aplicam-se à execução trabalhista de forma subsidiária desde que não contrariem o processo da Justiça do Trabalho. Sabemos que os instrumentos processuais para garantia da execução trabalhista pressupõem a citação do executado. Não pagando, nem garantindo a execução, “seguir-se-á penhora dos bens, tantos quantos bastem ao pagamento da importância da condenação”, nos termos do art. 883 da mesma CLT.
Baseados em dados fidedignos, do total de quase 2 milhões de inscrições feitas na plataforma, só a Justiça do Trabalho é responsável por cerca de 63.48% do total das ordens postadas na plataforma. Acrescente-se: uma profusão delas versa sobre execuções por valores irrisórios e desproporcionais, em afronta ao art. 8º do CPC, afetando e imobilizando o patrimônio de devedores reconhecidamente solventes.3 Além disso, tais ordens teratológicas geram um custoso processo de averbações em milhares de imóveis de propriedade das instituições financeiras, para logo seguir-se a ordem de cancelamento, em regra sem qualquer fundamento jurídico.
Plataformização do Registro Público
O fato é que não compreendemos perfeitamente o fenômeno do impacto que os meios eletrônicos têm nas transações econômicas, jurídicas e sociais. Num recorte exemplificativo, pensemos que a CNIB transportou para a nova plataforma “mais de 200 milhões de atos já cadastrados na central original”4 – o que nos dá a exata noção de magnitude da base de dados cuja gestão é humanamente impossível de se realizar sem o concurso das máquinas.
A criação dessa importante infovia desencadeou a irrupção de problemas inesperados – como a hipertrofia da ferramenta, fenômeno que exsurge de modo claro para o observador atento. O estudo da magnificação de eventos sugere que ela se dá em função direta da plataformização do registro público, o que acaba por transformar substancialmente o ecossistema registral e notarial, ocasionando fenômenos originais e não previstos.
Pode-se cogitar de uma distorção que guarda certa semelhança com o Paradoxo de Jevons5: à medida que os avanços tecnológicos aumentam a eficiência da plataforma, maior é geração de demandas que tendem a se diversificar e a acolher hipóteses análogas de constrição – one size fits all. Isto ocorre porque a maior eficiência da infovia tende a reduzir o custo de utilização do serviço, estimulando o crescimento da demanda. Ou seja, a facilidade de acesso, aliada à eficiência dos recursos tecnológicos, terá acarretado a aceleração inesperada (e quiçá ilegal) de novas modalidades de constrições, substituindo, como se viu, os instrumentos tradicionais de gravames judiciais.
O fenômeno levou à explosão de indisponibilidades de bens, desfigurando a função original, estimulando a opacidade nos negócios jurídicos e gerando maiores e mais significativos custos transacionais. Há uma década tivemos ocasião de alertar:
“Enfim, que diabos de indisponibilidade é essa que acaba por inibir a própria aquisição? É evidente que, decretada que seja uma indisponibilidade de bens, tal circunstância jazerá em estado de latência nos escaninhos labirínticos do sistema, ativando-se com o registro da aquisição.
(…).
Calharia um estudo para se apurar em que medida o uso desse instrumento é contraproducente. Nem me refiro, aqui, à indisponibilidade de bens decretada no bojo de ações de improbidade administrativa, intervenção em instituições financeiras, combate ao terrorismo; falo da vulgarização do instrumento nos processos de execução fiscal e trabalhista.
(…)
Como se vê, o grande drama dos gravames ocultos, que inspirou os legisladores no Século XIX a criarem o Registro Hipotecário, continua presente e embaraçando o livre intercâmbio de bens, onerando o sistema com crescentes custos transacionais. É o chamado “Custo Brasil”.6
O meio é a mensagem
Estamos, possivelmente, diante de um fenômeno disruptivo percebido por Marshall McLuhan: os meios eletrônicos não apenas conduzem, mas traduzem e transformam o transmissor, o receptor e a mensagem, como na sua famosa formulação – the medium is the message.7 O ecossistema da CNIB que não será tão-somente um envoltório passivo e neutro, mas uma alavanca disruptiva, processo ativo e dinâmico tendente a reconformar o próprio registro e o processo executivo pátrios.
O problema não é novo e já em 2015 propúnhamos que previamente à inscrição na plataforma, a autoridade deveria ser “conduzida a um processo preliminar de consulta acerca da existência de bens ou de direitos inscritos cujos titulares poderiam ser atingidos pelo gravame. O processo é simples e não envolve qualquer custo para a sua formulação e gestão. Não se faria a inscrição na CNIB sem antes certificar-se que inexiste bens e direitos em nome das pessoas atingidas”. Na mesma ocasião propugnávamos a reforma do sistema, com os argumentos abaixo expendidos.8
Os efeitos jurídicos da prenotação
Um dos inesperados efeitos surgidos no desenvolvimento da plataforma encontram-se no Provimento CN-CNJ 188, de 4/12/2024, que introduziu os artigos 320 e seguintes no CNN-CN-CNJ.Extra. O dispositivo que nos toca referir é o seguinte:
Art. 320-I. Os oficiais de registro de imóveis deverão consultar, diariamente, a CNIB e prenotar as ordens de indisponibilidade específicas relativas aos imóveis matriculados em suas serventias, bem como devem lançar as indisponibilidades sobre o patrimônio indistinto na base de dados utilizada para o controle da tramitação de títulos representativos de direitos contraditórios.
(…)
§ 3º A superveniência de ordem de indisponibilidade impede o registro de títulos, ainda que anteriormente prenotados, salvo exista na ordem judicial previsão em contrário.
A prenotação é ato próprio de registro (art. 182 e ss. – Do Processo de Registro). A prioridade registral, que nasce da prenotação, é um direito de eficácia material cujos efeitos retroagem à data da inscrição do título no Livro 1 – Protocolo. É indiscutivelmente um direito material, consoante o disposto no art. 1.246 do Código Civil, in verbis:
Art. 1.246. O registro é eficaz desde o momento em que se apresentar o título ao oficial do registro, e este o prenotar no protocolo.
É certo que o lançamento do título no Livro Protocolo proporciona o controle do transcurso posicional do título na esteira do processo de registro, graduando os acidentes representados por eventuais títulos concorrentes. A eficácia da prenotação, nesta perspectiva, é demarcatória de um direito posicional, de caráter formal. Todavia, o aspecto que deve merecer a nossa melhor consideração reside no aspecto material que decorre da eficácia jurídica que nasce diretamente da prenotação. Diz Pontes de Miranda:
“No art. 534 diz o Código Civil [atual art. 1.246], como regra, portanto, de direito privado (material): ‘A transcrição datar-se-á do dia em que se apresentar o título ao oficial de registo, e esse o prenotar no protocolo'”.9
Até a prenotação do título e a ulterior consumação do ato de registro, a situação jurídica do alienante ainda é de dono do imóvel, sujeito às dívidas cobráveis. O adquirente, antes do registro, “não pode dispor do imóvel, nem constituir sobre ele direitos reais, nem lhe cabem as ações de domínio, inclusive a de reivindicação. A sua situação é como a do comprador de bens móveis antes da tradição. Nada lhe é dado contra as ações reais e as constrições (penhoras, arrestos, sequestros), que partam de terceiros ou do próprio alienante”. Todavia, segue o Tratadista:
“Desde a data em que a promove e obtém a protocolização, o bem imóvel é seu. O negócio jurídico do acordo investe-o de tal poder. Todavia, a eficácia mesma da transcrição [registro] é desde a data da protocolização, mas depende do bom êxito do pedido-exigência. Se houve protocolização e se não procedeu à transcrição, ou porque se retirou a provocação (pedido-exigência), ou porque foi denegada, a eficácia é nenhuma; se foi feita a transcrição, a eficácia é desde a data em que se protocolizou o pedido”.[10]
O próprio Pontes de Miranda aludiria aos efeitos da decretação de falência ou insolvência do alienante no intervalo periclitante que calha entre a prenotação do título e o seu registro que “retroage, nesse caso, à data da prenotação”. O tratadista referia-se ao art. 535 do CC1916, sem correlato no atual, muito embora a Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, preveja no inc. VII do art. 129 o seguinte:
Art. 129. São ineficazes em relação à massa falida, tenha ou não o contratante conhecimento do estado de crise econômico-financeira do devedor, seja ou não intenção deste fraudar credores:
(…)
VII – os registros de direitos reais e de transferência de propriedade entre vivos, por título oneroso ou gratuito, ou a averbação relativa a imóveis realizados após a decretação da falência, salvo se tiver havido prenotação anterior.
A mesma regra se colhe do art. 215 da LRP, disposição que é tributária do direito registral brasileiro.11 A ressalva da lei releva os efeitos materiais da inscrição primigênia (prenotação), in verbis:
Art. 215 São nulos os registros efetuados após sentença de abertura de falência, ou do termo legal nele fixado, salvo se a apresentação tiver sido feita anteriormente.
A regra é tradicional e prestigiada pela nossa melhor doutrina. Serpa Lopes sustenta que ocorrendo a prenotação, chave do registo imobiliário12, o “ato da transcrição ou inscrição, uma vez realizado, remonta, em seus efeitos, à data da prenotação”.13 Em outra passagem, registra:
“Se a inscrição ou a transcrição representa o ato principal, a sua eficácia está até certo ponto dependente da prenotação no protocolo, pois a prioridade do registo funda-se na data de sua feitura.
Exerce função precípua quanto a uma das finalidades do registo, consistente, inegavelmente, não só na de constituição de direitos ou de requisitos de sua disponibilidade e de sua publicidade, como a de ser o fundamento da prioridade dos direitos que lhe estão afetos.
A posição dos direitos inscritos ou transcritos em relação a um imóvel, susceptíveis de entrarem em conflito entre si, fica necessariamente fixada pela ordem das prenotações, no protocolo, solução que se impõe, como bem refere René Morel, por se harmonizar com um bom sistema de publicidade imobiliária e que, além disso, aparece como uma consequência do princípio do nascimento do direito real a partir da data de sua inscrição.
Daí a razão do art. 202 [atual art. 186 da LRP] preceituar que o número de ordem determina a prioridade do título, e esta, a preferência dos direitos reais”.14
Afrânio de Carvalho segue na mesma senda: a “data da inscrição é, em regra, a data da apresentação do título, vale dizer, da sua prenotação do protocolo”, e segue:
“Quando o título passa para o livro de inscrição, por se mostrar apto a adquirir a posição registral, leva consigo a data da sua prenotação no protocolo. A data da inscrição, porém, será ordinariamente mais avançada do que a do protocolo. Não obstante, a numeração que lhe tiver sido dada nessa data assegurar-lhe-á a prioridade em relação a outro sobre o qual tiver precedência na cronologia da entrada. Só o título que, em confronto com outro, tiver essa prioridade é que deve ser transportado do protocolo para o livro de inscrição, ficando o outro retido na prenotação, como num verdadeiro limbo”.15
Jurisprudência
Pode-se dizer que é igualmente clássica a lição prestigiada pelos tribunais brasileiros, consubstanciada na parêmia tempus regit actum. Ainda que o título tenha sido formalizado antes da decretação da indisponibilidade, o registro interdita-se em razão da prévia averbação da constrição. A contrario, tendo sido prenotado o título, a disposição voluntária será válida e eficaz, embora a decretação da indisponibilidade lhe suceda in itinere. É o que se decidiu na Ap. Civ. 1024407-10.2024.8.26.0100: “ao menos sob o ponto de vista dos princípios registrais, os requisitos de validade e eficácia do título são observados ao tempo da prenotação (art. 1.246 do Código Civil)”.16 De fato, os requisitos de validade e eficácia do título são observados ao tempo da prenotação e assim, “em face do princípio da prioridade, gerado pela prenotação, os títulos contraditórios, preponderam sobre o título prenotado posteriormente (art. 186 da Lei nº 6.015/73)”.17 Noutra passagem, o mesmo CSMSP aponta:
“se o art. 1.246, do Código Civil, dispõe que o registro é eficaz desde o momento em que se apresentar o título ao Oficial de Registro, e este o prenotar no protocolo, fica claro que a marcha até a inscrição é um verdadeiro processo, no qual, protocolado o título, compete ao registrador, em observância ao disposto na Lei de Registros Públicos, fazer seu exame, qualificação e devolução, com exigências ou registro, no justo prazo”.18
As Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo consagram o mesmo princípio no item 108.3, Capítulo XX:
“108.3. Quando se tratar de ordem genérica de indisponibilidade de determinado bem imóvel, sem indicação do título que a ordem pretende atingir, não serão sustados os registros dos títulos que já estejam tramitando, porque estes devem ter assegurado o seu direito de prioridade. Contudo, os títulos que forem posteriormente protocolados terão suas prenotações suspensas como previsto no item 108”.19
No STJ o tema da graduação dos direitos já foi objeto de apreciação no caso de duplicidade de arrematações sobre o mesmo bem imóvel, firmando a corte a tese de que deve prevalecer a data da primeira prenotação nos termos do art. 186 da LRP, “tendo em vista que, nos termos do art. 1.246 do CC/2002, a aquisição do imóvel, embora perfectibilizada com o respectivo registro (7.7.2009), retroage à data de sua prenotação (25.6.2009)”.20 Igualmente no REsp 1.339.876/PR:
“A data da transcrição é a mesma da prenotação (arts. 182, 183 e 186 da Lei nº 6.015/1973). Esta define a prioridade dos direitos que lhe são afetos. Seus efeitos só cessarão se o interessado deixar de atender as exigências legais no prazo de trinta dias (art. 205 da Lei nº 6.015/1973)”.21
A determinação postada na plataforma da CNIB, ao fulminar o direito vestibular, acaba por atingir reflexamente os efeitos materiais da inscrição, afrontando o direito de propriedade e malferindo um de seus principais atributos que é o da disponibilidade. Ao final e ao cabo, interrompendo-se o curso natural do processo de registro no decêndio (art. 188 da LRP), sem qualquer culpa ou responsabilidade do adquirente – presumidamente de boa-fé -, tal fato nos conduz à necessidade de decisão judicial específica, apreciando o caso concreto e atacando, fundamentadamente, o ato de inscrição.
O direito de propriedade, na latência suspensiva da eficácia da prenotação, no caso da norma do CNJ, acaba por jazer numa espécie de limbo jurídico. Nem mesmo se pode cancelar a prenotação, pois este ato constitutivo negativo levaria à aniquilação dos efeitos jurídicos da prioridade sem o devido processo legal e, ipso facto, a obliteração da preferência dos direitos reais.
Por fim, calha uma pequena observação – decalcada do artigo de Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza. O CNN-CN-CNJ-Extra permite a lavratura de escrituras, mas impede o registro – não só destas, mas também daquelas lavradas e prenotadas antecedentemente no registro. Pergunta-nos o autor citado: “Qual a lógica, tendo em conta o sistema de duas etapas na aquisição da propriedade? Para a primeira etapa, a indisponibilidade não é óbice, ainda que decorra da lei e o efeito seja a nulidade do ato de disposição de bens atingidos pela indisponibilidade. Quanto à segunda etapa, a indisponibilidade impede o registro, mesmo a que alcança o protocolo após o ingresso de um título totalmente hígido”.22
Ressalvado o título prenotado anteriormente à constrição, tanto a lavratura da escritura quanto o registro sucessivo podem representar mera ineficácia em face da execução, e não nulidade de pleno direito.
Valeria, em todo o caso, sopesar o menor impacto que a constrição representaria aos interessados.
Conclusões
O sistema eletrônico transformou-se em ferramenta draconiana na medida em que os vários meios postos à disposição do credor para promover a execução e a satisfação de seus créditos, a indisponibilidade de bens, entre todos eles, é o modo mais gravoso para o devedor, subvertendo a ordem e os princípios tradicionalmente consagrados na lei processual civil (art. 805 do CPC).
Por essa razão, toda ordem genérica deve ser utilizada de modo prudente e consentâneo com os princípios da boa-fé, preservando e garantindo o ato jurídico perfeito e o direito adquirido.
Em suma, prenotado o título e sem que o interessado deixe escoar o prazo decadencial da prenotação (no caso de não atendimento a exigências do Cartório por omissão ou desinteresse – art. 205 da LRP), o registro há de se efetivar, perfectibilizando-se no iter legal e consagrando o direito.
Proposta de alteração
Seria possível aperfeiçoar o sistema trocando simplesmente a ordem do referido § 3º:
§ 3º A superveniência de ordem de indisponibilidade não impede o registro de títulos anteriormente prenotados, salvo ordem judicial expressa em sentido contrário.
§ 4º No caso de prevalência da ordem de indisponibilidade, nos termos do § 3º, o registro será consumado no prazo legal, porém será ineficaz em relação ao processo do qual se originou a constrição.
Seja como for, a regra estampada no § 3º do art. 320-I do CNN-CN-CNJ-Extra, in fine, deve ser revista. Ela cria uma inesperada anomalia no sistema civil, registral e processual brasileiro e a consequente fragilização dos direitos e garantias de direitos fundamentais.
__________
1 Para um excurso retrospectivo, v. JACOMINO, Sérgio. Indisponibilidade de bens no Registro de Imóveis – Partes I e II. São Paulo: Observatório do Registro, 2024. Disponível: Parte I: https://wp.me/p6rdW-3BS; Parte II: https://wp.me/p6rdW-3Cz. Vide elenco de leis e dispositivos normativos sobre o tema da indisponibilidade em: RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Da Indisponibilidade de Bens no Registro de Imóveis. São Paulo: IRIB, 2024, pp. 180 et seq.
2 STJ AgRg no Ag n. 1.429.330/BA, relator Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, julgado em 22/8/2012, DJe de 3/9/2012. V. CLAUS, Ben-Hur Silveira. A aplicação da medida legal de indisponibilidade de bens prevista no art. 185-A do CTN ao processo do trabalho – Execução trabalhista efetiva, por juiz do Trabalho. 13.1.2014. disponível: https://www.trt4.jus.br/portais/trt4/modulos/noticias/108635. Vide, igualmente, a tese n. 137 do 3º Fórum Nacional de Processo do Trabalho (FNPT): “A Teoria do Diálogo das Fontes é fundamento para a aplicação da medida legal de indisponibilidade de bens, prevista no art. 185-A do Código Tributário Nacional, ao Processo do Trabalho”. NERY JR., Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. CPC comentado. São Paulo: RT, 17ª ed., 2018, p. 66.
3 Ad exemplum: Banco do Brasil (202412.1213.03755670-IA-031), Bradesco (202412.0516.03741645-IA-490), Prefeitura Municipal de São Paulo (202401.0919.03105495-IA-560), Caixa Econômica (202408.1911.03520312-IA-470), Itaú (202410.2209.03654741-IA-210), Petrobrás (202410.2209.03654741-IA-210) entre tantos outros. Dados extraídos da fonte.
4 Informe do ONR – Atualizações sobre a Central de Indisponibilidade de Bens (CNIB 2.0), postado nas redes sociais no dia 16/1/2025, às 19h:52min.
5 A referência não é perfeita, mas nos faz pensar, como William Stanley Jevons, que à medida que os avanços tecnológicos aumentam a eficiência no uso de um recurso, o consumo total desse recurso pode aumentar, em vez de diminuir.
6 JACOMINO, Sérgio. A Reforma Indisponibilidade de Bens – Um Vírus: Sua Latência e Potência. São Paulo: Observatório do Registro, 19.9.2015, disponível: https://wp.me/p6rdW-DM.
7 McLUHAN. Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. PIGNATARI, Décio (trad.). São Paulo: Cultrix, 1969, p. 108-9.
8 JACOMINO, Sérgio. Op. cit. loc. cit.
9 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Tomo XI. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, § 1.220. Data do Registo, p. 332, n. 1, passim.
10 Op. Cit. § 1.245, p. 435-6, n. 5
11 V. art. 230 do Decreto 4.857/1939.
12 A expressão é esplêndida por encerrar uma figura de linguagem que encerra a ideia de processo cuja culminância é a consagração do direito real. A feliz expressão se acha consagrada desde a Reforma de Nabuco (art. 25 do Decreto 3.453, de 26 de abril de 1865), repetida sucessivamente nos regulamentos subsequentes, mas abandonada na atual LRP.
13 SERPA LOPES. Miguel Maria de. Tratado. Vol. IV, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, p. 363.
14 Op. Cit. p. 328.
15 CARVALHO, Afrânio de. Registro de Imóveis, 3ª ed. 1982, Rio de Janeiro: Forense, p. 398.
16 Ap. Civ. 1024407-10.2024.8.26.0100, São Paulo, j. 15/8/2024, Dje 15/8/2024, Rel. Des. Francisco Loureiro. Disponível: http://kollsys.org/us5.
17 Ap. Civ. 1003007-96.2021.8.26.0664, Votuporanga, j. 2/12/2021, Dje 24/2/2022, Rel. Des. Ricardo Mair Anafe. Disponível: http://kollsys.org/rbm.
18 Ap. Civ. 1006060-52.2022.8.26.0114, Campinas, j. 24/3/2023, Dje 25/5/2023, Rel. Des. Fernando Antônio Torres Garcia. Disponível: http://kollsys.org/st5.
19 A redação das NSCGJSP originou-se do Provimento CG 17/1999 que se baseou, por seu turno, em parecer oferecido no Processo CG 1.671/1998. Destacamos: “De outro lado, no entanto, se a ordem for genérica, não poderá atingir os títulos que já estejam tramitando e já tenham a sua prioridade assegurada, mas impedirão o registro de outros títulos que sejam prenotados em seguida ao mandado, pelos mesmos motivos”. Processo CG 1.671/1998, parecer da lavra de Antonio Carlos Morais Pucci, Francisco Antonio Bianco Neto, Luiz Paulo Aliende Ribeiro, Marcelo Fortes Barbosa Filho, Marcelo Martins Berthe, Juízes Auxiliares da Corregedoria Geral. Disponível: http://kollsys.org/4o4.
20 REsp n. 1.242.656/SC, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 7/6/2011, DJe de 10/6/2011.
21 REsp n. 1.339.876/PR, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 26/4/2016, DJe de 3/5/2016.
22 SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de. Averbação de indisponibilidade de bens – O CNJ prestigia a insegurança jurídica. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais, 16.12.2024. Disponível: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/421591/averbacao-de-indisponibilidade-de-bens–cnj-e-inseguranca-juridica.
Fonte: Migalhas
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A relação da atividade notarial preventiva e o processo civil: Comparação entre Civil Law e Common Law
Os sistemas jurídicos de Civil Law e Common Law diferem profundamente em sua estrutura e aplicação. Enquanto o Civil Law, predominante em países como Brasil, França e Alemanha, é baseado em códigos detalhados e na atuação preventiva de figuras como o notário, o Common Law, adotado em países como Estados Unidos e Inglaterra, prioriza a jurisprudência e a resolução de conflitos por meio de precedentes judiciais. Essa distinção tem reflexos diretos na maneira como litígios são evitados, geridos e resolvidos, especialmente na interação entre a atividade notarial preventiva e o processo civil.
Principais diferenças entre esses sistemas jurídicos
Como dito acima, o Common Law é baseado na jurisprudência, ou seja, em decisões judiciais que servem como precedentes para casos futuros. Por outro lado, o Civil Law fundamenta-se em códigos legais abrangentes e detalhados, que orientam a aplicação do Direito de maneira sistemática. Enquanto o Common Law valoriza a flexibilidade interpretativa e o papel do juiz na construção do Direito, o Civil Law privilegia a clareza normativa e a uniformidade das leis.
Outra distinção marcante é o papel das provas e da oralidade no processo judicial. No Common Law, os processos são predominantemente orais, e as partes apresentam seus argumentos diretamente em juízo, sendo o julgamento frequentemente decidido com base em precedentes e em depoimentos. Já no Civil Law, a prova documental tem maior peso, e o processo é mais formal e escrito, com ênfase na análise detalhada dos atos e contratos prévios. Essa diferença reflete uma abordagem mais pragmática no Common Law, enquanto o Civil Law tende a ser mais técnico e estruturado.
Essas características também influenciam a percepção de justiça em cada sistema. O Common Law prioriza a resolução rápida de litígios e a adaptabilidade a novas circunstâncias, mas pode gerar incertezas jurídicas em situações de interpretações variáveis e menor defesa do hipossuficiente. O Civil Law, por sua vez, busca oferecer maior segurança jurídica por meio da codificação detalhada, mas muitas vezes é criticado pela morosidade e pelo rigor excessivo. Ambas as abordagens têm vantagens e limitações, moldando-se às necessidades e culturas das sociedades que as adotam.
Os sistemas Common Law e Civil Law são produtos das necessidades e culturas das sociedades onde se desenvolveram, refletindo valores e prioridades distintas. O Common Law nasceu em contextos que valorizavam a pragmatismo e a descentralização do poder. Sua base permite maior flexibilidade e adaptabilidade. Essa abordagem proporciona soluções rápidas e específicas, atendendo à necessidade de dinamismo e à preferência por soluções personalizadas para conflitos individuais, onde há maior predisposição à aceitação das decisões.
Por outro lado, o Civil Law reflete uma cultura que privilegia a ordem, a segurança jurídica e a previsibilidade. Surgido em contextos de centralização política e jurídica, esse sistema responde à necessidade de estabilidade social e econômica por meio de códigos detalhados que padronizam a aplicação do direito. Em sociedades onde há maior valorização da formalidade e do papel do Estado como garantidor da justiça, o Civil Law oferece confiança na legalidade e proteção contra arbitrariedades, mesmo que isso implique um sistema mais lento e burocrático. Prepondera onde há maior necessidade de mecanismos de pacificação.
Essas diferenças mostram como cada sistema jurídico é moldado pelas expectativas e pela história das sociedades que os adotam. Enquanto o Common Law privilegia a autonomia individual e a resolução pragmática de conflitos, o Civil Law reforça a coesão social e a uniformidade de tratamento jurídico. Ambos os sistemas evoluem para atender às demandas contemporâneas, mas sempre preservando os traços culturais que os tornam únicos em suas respectivas regiões.
As características culturais predominantes entre os latinos e os cidadãos da Europa Continental, de maneira geral, não se alinham naturalmente ao sistema de Common Law. Traços culturais dos latinos, como a valorização da formalidade em certas interações, a preferência por normas claras e a expectativa de um papel ativo do Estado como garantidor de direitos, são mais compatíveis com o sistema de Civil Law. Os latinos tendem a buscar segurança jurídica e previsibilidade nas relações, o que pode entrar em conflito com a menor ênfase do Common Law em regras codificadas e sua dependência de decisões casuísticas.
O casuísmo característico das decisões no sistema Common Law, baseado na aplicação de precedentes judiciais e na interpretação específica de cada caso, pode gerar inconformismo, especialmente quando as partes percebem disparidades entre decisões aparentemente semelhantes. A dependência de precedentes pode levar a resultados diferentes para situações parecidas, dependendo da interpretação do juiz ou da qualidade dos argumentos apresentados, criando uma sensação de imprevisibilidade ou até de injustiça. Além disso, a evolução contínua da jurisprudência, embora adaptável, pode ser vista como instável por aqueles que buscam segurança jurídica, reforçando um sentimento de insatisfação em contextos onde a consistência e a uniformidade são esperadas como pilares da justiça.
Assim, enquanto os latinos podem se adaptar ao Common Law em situações que demandam flexibilidade e pragmatismo, o alinhamento completo com esse sistema pode exigir uma mudança significativa em valores e expectativas culturais profundamente enraizados.
Características do processo civil no sistema common law e no civil law
O processo civil nos sistemas Common Law e Civil Law apresentam diferenças marcantes, refletindo as filosofias jurídicas e culturais de cada modelo. No Common Law, o processo é caracterizado pela predominância da oralidade e pela centralidade dos precedentes. As partes apresentam seus argumentos de forma verbal em audiências, e o julgamento frequentemente depende da interpretação de decisões anteriores. Essa abordagem oferece flexibilidade e permite que o direito se adapte às particularidades de cada caso. O juiz atua como um árbitro, garantindo a imparcialidade do procedimento, enquanto as partes desempenham um papel ativo na apresentação de provas e argumentos. Em alguns contextos, como nos Estados Unidos, o júri desempenha uma função decisiva, trazendo um aspecto comunitário à resolução de disputas.
Por outro lado, no Civil Law, o processo civil é estruturado em torno de normas codificadas e da formalidade escrita. A condução do processo é mais rigorosa e segue etapas bem definidas, com grande peso atribuído às provas documentais. Essa formalidade reflete o objetivo de garantir segurança jurídica e previsibilidade, valores centrais do sistema. O juiz desempenha um papel ativo na instrução do processo, determinando a produção de provas e buscando a verdade material. Diferentemente do Common Law, os precedentes possuem menor influência, já que a fundamentação das decisões é prioritariamente baseada em leis codificadas. Essa abordagem mais estruturada e técnica contribui para a uniformidade das decisões e a redução de conflitos posteriores. Enquanto o Common Law prioriza a flexibilidade e a adaptabilidade, o Civil Law valoriza a estabilidade e a clareza, demonstrando como cada sistema responde às necessidades e expectativas das sociedades em que está inserido.
No sistema Civil Law, o processo civil é estruturado para oferecer às partes amplo espaço processual e diversas possibilidades de recurso, refletindo a prioridade desse modelo em assegurar a exaustão de todas as etapas e a percepção de justiça plena. A ênfase em procedimentos formais, prazos definidos e produção de provas robustas cria um ambiente que favorece a análise detalhada de cada aspecto do conflito. Esse rigor processual, embora frequentemente criticado por sua morosidade, é projetado para garantir que as partes tenham oportunidade total de apresentar seus argumentos e contestar decisões, reforçando a legitimidade do processo.
Esse processo detalhado, embora demorado, atende à necessidade cultural de muitos países de Civil Law, especialmente os latinos, de proporcionar pacificação social por meio de um processo percebido como exaustivo e justo. Essa abordagem, embora mais custosa e burocrática, privilegia a segurança jurídica e a confiança na justiça.
Vale reforçar que a morosidade processual não deve ser interpretada apenas como uma falha, mas como uma característica funcional. O amplo espaço processual cumpre um papel social ao oferecer às partes o tempo necessário para amadurecerem o conflito e assimilarem suas consequências. Esse processo mais longo gera o efeito psicológico da pacificação social, garantindo que as partes percebam que tiveram todas as oportunidades para expor seus argumentos e buscar uma solução justa.
Em contraste, no Common Law, a resolução mais rápida, embora eficiente em termos práticos, pode não proporcionar a mesma sensação de justiça plena, especialmente em culturas onde a litigiosidade é vista como um último recurso. Nos países de Civil Law, o processo é frequentemente moldado pela ideia de que o tempo e a formalidade ajudam a estabilizar relações e a evitar ressentimentos, promovendo um senso de encerramento mais duradouro.
Nesse contexto, a prevenção ganha evidente importância, máxime diante da tendência do sistema Common Law, como comprovado estatisticamente, de gerar maior judicialização em comparação com o Civil Law, especialmente em relação a disputas privadas. Essa maior judicialização decorre de características estruturais do Common Law, como a ausência de codificações abrangentes e a dependência de precedentes judiciais para resolver conflitos. Em muitos casos, questões que poderiam ser resolvidas preventivamente por meio de atos jurídicos formalizados, como ocorre no Civil Law, acabam sendo levadas ao tribunal no Common Law, pois é lá que os parâmetros para solução são estabelecidos e interpretados.
Além disso, a cultura jurídica dos países de Common Law muitas vezes incentiva a resolução de disputas por meio de litígios, pois os tribunais têm um papel central na criação e adaptação do direito. Por outro lado, no Civil Law, a forte ênfase em normas codificadas e a presença de figuras preventivas, como os notários, reduzem significativamente a necessidade de judicialização, já que muitos conflitos são evitados por atos previamente validados e com força probatória robusta. Assim, enquanto o Common Law é mais litigioso por natureza, o Civil Law busca minimizar conflitos por meio de segurança jurídica e soluções extrajudiciais.
A relação da atividade preventiva no processo civil do sistema civil law
A relação entre a atividade preventiva e o processo civil no sistema Civil Law é intrinsecamente ligada à busca pela segurança jurídica e pela redução de litígios. O sistema Civil Law ao valorizar a codificação detalhada das normas e a formalidade nas relações jurídicas, permite que muitos conflitos sejam evitados por meio de atos preventivos, como os realizados pelos notários. Essa atividade preventiva tem como objetivo principal garantir que os atos jurídicos sejam constituídos de forma clara, legítima e equilibrada, minimizando a possibilidade de controvérsias futuras.
Esse alinhamento entre a atividade preventiva e o processo civil reflete o compromisso do sistema Civil Law com a pacificação social e a previsibilidade das relações jurídicas. Ao transferir uma parcela significativa da solução de conflitos para o campo preventivo, o sistema reduz a carga sobre o Poder Judiciário e promove a confiança nas instituições jurídicas. Essa relação simbiótica fortalece o objetivo maior do Civil Law: criar um ambiente jurídico estável, onde os litígios sejam exceção, e não regra, e onde a justiça preventiva complemente a justiça processual.
Em comparação, o sistema Common Law não tem, como característica central, a prevenção de litígios, ao contrário do sistema Civil Law, que valoriza a segurança jurídica por meio de atos prévios e normas codificadas. No Common Law, a resolução de conflitos tende a ocorrer de forma reativa, com a maior parte das disputas sendo tratada nos tribunais, onde os precedentes judiciais e a interpretação do juiz desempenham papéis fundamentais. A lógica desse sistema é menos voltada para evitar disputas e mais para fornecer soluções adaptadas e pragmáticas quando os conflitos surgem.
Assim, enquanto o Common Law pode lidar bem com disputas já existentes, ele é menos focado na prevenção, confiando mais na capacidade das partes e do mercado para regular suas relações, em vez de se socorrer de estruturas jurídicas preventivas formalizadas.
Vemos assim, que o sistema Civil Law possui duas pernas bem delimitadas, uma formada pelas estruturas de prevenção dos litígios, como a atividade notarial, e outra por um processo civil com amplo espaço probatório e de manifestação das partes, como forma de se atingir o conformismo necessário à pacificação social.
O papel preventivo do notariado no Civil Law
Dentro das estruturas de prevenção de litígios do sistema Civil Law, destaca-se a atividade notarial.
Nos países de Civil Law, a atividade notarial é um pilar do sistema jurídico, com a função primordial de evitar conflitos antes que eles se materializem. O notário, como agente público imparcial, assegura que os atos jurídicos sejam elaborados de maneira conforme à legislação e ajustados às necessidades das partes, reduzindo significativamente o risco de litígios futuros.
Em contraste, nos países de Common Law, não há a mesma ênfase na prevenção formal. Transações e documentos geralmente são preparados por advogados ou pelas próprias partes, sendo posteriormente validados em caso de disputa judicial. Essa abordagem, embora mais flexível, como já mencionado, frequentemente leva a uma maior judicialização, pois as ambiguidades só são resolvidas após o surgimento do conflito.
No Civil Law, os atos notariais possuem força probante robusta, sendo considerados autênticos e exequíveis desde a sua confecção. Contratos e testamentos lavrados por notários, por exemplo, carregam presunção de veracidade e são menos propensos a questionamentos no âmbito judicial. Já no Common Law, a força probante de documentos depende de análise judicial, o que demanda mais esforço na fase processual.
Impacto na segurança jurídica e na pacificação social
A segurança jurídica é um pilar fundamental dos sistemas jurídicos, mas sua construção e manutenção variam significativamente entre os modelos de Civil Law e Common Law. No sistema Civil Law, a segurança jurídica é alcançada por meio da formalidade e da previsibilidade, sustentadas pela atividade preventiva de notários e pela estrutura rigorosa do processo civil. Em países latinos, onde há uma forte demanda por um sistema jurídico robusto e transparente, essa abordagem atende às expectativas culturais e sociais, promovendo estabilidade e confiança nas instituições legais. A formalização detalhada e a análise exaustiva das demandas garantem que as partes percebam o processo como justo, favorecendo a pacificação social.
Já no sistema Common Law, a segurança jurídica é baseada na força dos precedentes judiciais, que fornecem previsibilidade, e na rapidez da resolução de conflitos. Essa agilidade responde bem a sociedades mais pragmáticas, mas pode não ser suficiente em contextos que exigem uma percepção mais abrangente de justiça. A ausência de uma estrutura preventiva robusta e o menor formalismo processual podem deixar lacunas na pacificação social, especialmente em situações em que as partes esperam um processo mais detalhado para validar a legitimidade das decisões
Litigiosidade nos sistemas de Common Law e Civil Law: Uma análise comparativa
A litigiosidade nos sistemas jurídicos é um tema central para compreender a dinâmica da justiça e os impactos sociais e econômicos do volume de processos judiciais em diferentes países. Os sistemas de common law e civil law, as principais tradições jurídicas no mundo, apresentam diferenças estruturais e culturais que influenciam diretamente o número de litígios por habitante.
Em países que adotam o sistema de common law, como os Estados Unidos e o Reino Unido, o número de processos judiciais tende a ser significativamente maior. Essa característica decorre, em grande parte, do método adversarial, no qual as partes possuem ampla liberdade para apresentar provas e argumentos, enquanto o juiz assume um papel moderador. Essa abordagem faz do litígio a principal ferramenta para a resolução de conflitos, consolidando o processo judicial como um meio central para a interpretação e aplicação da lei. Além disso, a força vinculativa dos precedentes judiciais – decisões que servem como referência obrigatória para casos futuros – incentiva a judicialização de disputas, em busca de decisões inovadoras ou favoráveis.
Por outro lado, os países de tradição civil law, como Alemanha, França e Brasil, apresentam uma abordagem distinta, focada na prevenção de litígios. Nesse sistema, as transações e contratos frequentemente exigem a intervenção de notários e outras autoridades para garantir a segurança jurídica. Esse formalismo preventivo reduz significativamente a ocorrência de conflitos posteriores, pois oferece maior clareza e precisão às partes envolvidas. Ademais, o papel mais ativo do juiz no civil law, que pode conduzir investigações e determinar provas, contribui para a celeridade e centralização do processo, desestimulando litígios desnecessários.
Aliado a isso, a cultura de soluções extrajudiciais, como atos notariais e mediação, fortalece mecanismos alternativos para a resolução de conflitos, diminuindo a pressão sobre o Judiciário.
As consequências dessas diferenças estruturais vão além do volume de litígios. Nos países de common law, o alto número de processos pode levar à sobrecarga judicial e a custos elevados, tanto para o Estado quanto para os cidadãos. Em contrapartida, os sistemas de civil law priorizam a eficiência e a previsibilidade, mitigando os impactos econômicos e sociais do litígio por meio de mecanismos preventivos.
Embora cada sistema jurídico tenha suas vantagens e desafios, o civil law se destaca por sua capacidade de prevenir conflitos e promover soluções pacíficas. Ao formalizar preventivamente as relações e incentivar o uso de meios extrajudiciais, este modelo oferece um sistema mais acessível e funcional. Já o common law, apesar de sua litigiosidade elevada, proporciona flexibilidade e inovação jurídica, evidenciando a relevância dos precedentes na evolução das normas.
Em síntese, a comparação entre common law e civil law evidencia como diferentes tradições jurídicas refletem valores culturais e econômicos distintos. A escolha entre litigação e prevenção, entre flexibilidade e formalismo, molda os sistemas de justiça e influencia diretamente a vida dos cidadãos e a estrutura das sociedades.
O impacto do enfraquecimento das estruturas de prevenção no Brasil
Com a tendência atual de enfraquecimento da atividade de prevenção, observa-se um aumento expressivo na litigiosidade, gerando impactos significativos tanto no Poder Judiciário quanto na sociedade.
A atividade notarial, que há muito funciona como uma barreira preventiva contra conflitos judiciais, vem sendo gradualmente desvalorizada, o que já leva muitas questões, antes resolvidas extrajudicialmente, a serem levadas aos tribunais. Esse movimento resulta em um crescimento contínuo no número de processos, aumentando a pressão sobre o sistema judiciário.
Essa elevação na demanda processual agrava a já crítica sobrecarga do Judiciário brasileiro, que enfrenta desafios estruturais de morosidade e excesso de litígios. Sem documentos dotados de fé pública e força probante robusta, os processos tornam-se mais complexos, exigindo maior produção de provas e prolongando o tempo de tramitação. Como consequência, a celeridade processual diminui, prejudicando a eficiência do sistema e gerando crescente insatisfação entre os cidadãos, que já percebem, ainda que na maioria das vezes injustamente, a justiça como lenta e inacessível em muitos casos.
Para a sociedade, os reflexos dessa tendência são igualmente preocupantes. A ausência de mecanismos preventivos encarece as disputas, tanto em termos financeiros quanto emocionais, enquanto cidadãos e empresas enfrentam maior incerteza jurídica e longos períodos de instabilidade. Esse ambiente desestimula acordos consensuais e prejudica o clima de negócios, reduzindo investimentos e corroendo a confiança no sistema jurídico. Além disso, o aumento de conflitos judiciais sem resolução ágil compromete a pacificação social, exacerbando tensões entre as partes envolvidas e minando a percepção de justiça. Adicionalmente, a retirada dessas estruturas poderia minar a pacificação social, uma vez que a ausência de mecanismos preventivos deixaria as partes mais vulneráveis a conflitos e disputas prolongadas, ampliando ressentimentos e desconfianças.
Nunca é demais repetir que atividade notarial no Brasil desempenha um papel essencial na prevenção de litígios, oferecendo segurança jurídica e eficácia aos atos jurídicos por meio de documentos revestidos de fé pública. A diminuição de sua atuação implica em uma redução significativa na confiabilidade dos contratos e transações.
Em resumo, o enfraquecimento da atividade notarial no Brasil produz, além de desvirtuar a lógica preventiva e formalista desses sistemas, efeitos em cascata, comprometendo não apenas a eficiência do sistema processual, mas também a segurança jurídica e a coesão social. A prevenção desempenha um papel indispensável em países de Civil Law, especialmente em contextos latinos, onde há uma forte dependência de estruturas formais para garantir a estabilidade das relações jurídicas. Sem esses mecanismos, o sistema enfrentaria um desequilíbrio estrutural, com consequências potencialmente graves para a sociedade e a economia.
Conclusão: A importância de preservar as bases do sistema Civil Law ou o caos que se avizinha se a tendência de enfraquecimento dos mecanismos de prevenção perdurar
O equilíbrio e a eficácia do sistema Civil Law dependem de suas duas bases fundamentais: os mecanismos de prevenção, como a atividade notarial, e um processo civil com amplo espaço para as partes. Esses pilares complementares garantem a segurança jurídica e a pacificação social, prevenindo conflitos antes que se materializem e oferecendo um espaço processual robusto para a resolução daqueles que inevitavelmente surgem.
Os mecanismos preventivos desempenham um papel essencial ao formalizar relações jurídicas com clareza e autenticidade, reduzindo a judicialização e promovendo estabilidade nas relações sociais e comerciais. Por outro lado, o processo civil com amplo espaço assegura que, nos casos em que o conflito se torna inevitável, as partes tenham a oportunidade de apresentar plenamente seus argumentos e de buscar soluções exaustivas, reforçando a percepção de justiça.
A retirada ou enfraquecimento de qualquer um desses pilares compromete a funcionalidade do sistema, resultando em aumento da litigiosidade, sobrecarga do Judiciário e instabilidade social. Assim, preservar a harmonia entre prevenção e processo não é apenas uma necessidade técnica, mas também um compromisso com a estabilidade e a confiança no sistema jurídico, assegurando que ele continue a atender às demandas de uma sociedade cada vez mais complexa e exigente.
Fonte: Migalhas